Traduzindo: apesar de todas as convencionalidades, as coisas não são aquilo que são; são o que significam para aqueles que as produzem, comercializam, consomem e descartam. Pelos relacionamentos sociais e pela mídia, as pessoas se relacionam com o que está disponível e passam a desejar, a querer possuir, a exibir essas coisas como forma de discurso, pertencimento e distinção. De modo oportuno, o mundo dos negócios traduz essas sensações e desejos em produtos e serviços, sistematizados em uma estrutura monetária e empacotados para entrega, efetivando o moto-contínuo do mercado em que cada um ressignifica tudo conforme lhe convém, desde que se pague o preço estipulado.
Selecionei dois pensadores, entre tantos que estudam “quanto valem os valores”, para você refletir:
- Nietzsche, para quem “valores são interpretações e não mais passíveis de uma apreciação em termos de verdade ou falsidade que qualquer outro gênero de interpretação”, dependendo de cultura (que, para ele, não tem como objetivo a formação intelectual ou o saber, mas abarca as atividades humanas e suas produções: moral, religião, arte, filosofia, estrutura política, entre outras), doutrina ou sistema de pensamento moral, religioso, filosófico, educacional — o que confirma a não existência de uma verdade única, e sim de convenções sobre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, dependendo do código de crenças comumente aceito; e
- Pierre Bourdieu, que propõe a existência de uma alquimia social que transmuta valores, objetivando a conservação da energia social. Quando se estabelece uma troca, trocam-se valores — materiais, monetários, simbólicos —, mesmo que subjetivos, incutidos nos objetos trocados. Como calibrar o que vale o que e quanto para quem? Como a economia pode esquadrinhar e mensurar essa transmutação? Como mapear e explicar a “liga”, mágica e ilógica, de valor afetivo, que modifica preços, descaracteriza produtos de sua funcionalidade e estabelece laços, conectando e integrando pessoas? A questão do valor é complexa, interpretativa e simbólica.
O significado de valor
Vale aqui um alerta: os preços podem ser resultantes de composições matemáticas, mas os julgamentos de valor são ilusões efêmeras voláteis e volúveis. Não fomos nós que os inventamos, mas se transformaram em convenções às quais sucumbimos: há uma longa história sobre como a economia trabalha os sistemas de troca monetária, e este processo se transformou ao longo da linha do tempo interferindo na percepção que se tem sobre as negociações que são efetivadas com base em crenças e valores. Isso mesmo: dependendo daquilo em que se acredita, muda a forma de se ver e valorizar o mundo em cada época, cultura, circunstância, tribo, conglomerado. Por exemplo e de forma resumida:
- Na teoria grega antiga, a ordem perfeita é o próprio universo e tudo já existia; as coisas não foram criadas ou inventadas, foram apenas descobertas. O valor está em conhecer.
- No direito romano clássico, a natureza é justa e boa e o valor está na partilha em que cada um recebe o que lhe é devido, o que lhe pertence, o que é seu por direito. O valor está na justiça.
- Na revolução científica moderna, as evidências e as comprovações de todas coisas da natureza modificam os achismos e impõem as “certezas”. O valor está na ciência.
- No humanismo do pós-guerra, questionam-se as consequências morais e políticas da ciência (bombas, arsenal de guerra, etc.), especialmente nos campos da ecologia e bioética (meados do século XX). O valor está na “ética”.
- No progresso globalizado atual, a espiral incessante do sucesso estimula o aumento do consumo, da produtividade, da logística… sem considerar o impacto disso tudo na natureza. O valor está na consciência social.
Sim, hoje, em plena pandemia, convencionou-se que o valor das coisas está na consciência social. Que as empresas precisam atuar com RSE (Responsabilidade Social Empresarial) e que os novos fundos e investimentos precisam ser sustentáveis respeitando o Meio-Ambiente, o Social e Governança (ESG: (Environment, Social & Governance).
Porém vivemos em uma sociedade que ainda se move e comove prioritariamente pela bolsa de valores monetários, desconsiderando valores humanitários. E em um mercado que valoriza e estimula a competição e não a colaboração. Produzir e anunciar produtos e serviços sem se preocupar com danos ambientais (processos de produção e descarte, incluindo poluição, entre outros), saúde pública (qualidade e consequência do consumo dos ingredientes, entre outros) e respeito aos stakeholders (de abuso de poder a uso indevido de dados, entre outros) soa um tanto ultrapassado, muito egoísta e, mais que isso, irresponsável.
Cada indivíduo importa
Claro, vivemos em um livre mercado em que todas as pessoas têm liberdade para empreender e ganhar, e para valorizar as coisas da forma como bem quiserem, porém fazer isso com a isenção total das consequências e da interdependência de cada atitude não faz mais sentido; não pode mais ser aceitável e muito menos valorizado. Qual a relevância do que é feito? Quais os riscos e danos para a sociedade e o planeta? Para onde estamos indo e o que queremos?
Eis a questão: ativar o mercado ou sobreviver com mais qualidade de vida? Será que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa? Ou será que podemos repensar processos e conseguir uma coisa e outra?
Você é o que você consome ou deixa de consumir, de acordo com o seu repertório e os seus interesses e, por mais inofensiva que pareça, a sua jornada mercadológica interfere não apenas na sua vida, mas na sua comunidade e em todo o planeta.
Tudo tem seu preço, mas quem dota as coisas e os relacionamentos de valores somos nós. Por isso, a consciência social começa com o conhecimento da nossa própria consciência.
O que vale o que para você? Bom desafio para este ano novo, com pandemia e com vacina.